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domingo, setembro 23, 2018

AOS PONTAPÉS DA VIDA

"...Nunca conheci o meu pai. Chegou embarcado num cargueiro, atracou ao porto de Leixões e seduziu a minha mãe - moça órfã, carente, ingénua e sonhadora -, que acreditou na lábia de um homem sabido, habituado a levar na léria as moças ingénuas por esses portos onde atracava. Usou-a. Alguns meses depois partiu sem mais se preocupar com aquela pequena órfã, que deixara de “barriga cheia”, a quem prometera amor eterno numa noite de paixão, na orla da praia, sob a luz clara de um lindo luar de Agosto.
E a minha mãe ficou por ali, jovem de quinze anos a viver num casebre à beira da praia, com uma velha avó quase cega, que morreu logo depois. Ficou sozinha muito antes de eu nascer, grávida de mim, sem saber o que fazer à sua vida. Uma menina, que a vida dura e cruel transformou rapidamente em mulher corajosa e forte, com um filho nos braços. Nasci em Maio, o mês das flores, como tantas vezes me dizia, chamando-me o seu cravo vermelho e perfumado.
- Vem cá meu cravo vermelho! Nasceste no mês das flores. És o meu cravo lindo e bem cheiroso. Dás cor e vida à minha vida. Dizia, abraçando-me contra o seu peito amoroso, quando chegava cansada de um duro dia de extenuante labuta para angariar o negro pão de que nos alimentávamos.
Enquanto bebé de colo e mama levava-me nos braços e carregava na cabeça a giga com a sardinha, que ia apregoar de aldeia em aldeia. Depois, quando comecei a andar, deixava-me na praia, junto dos velhos pescadores que por ali se entretinham a remendar as redes, ou com a velha Zulmira, a mulher do pescador Zacarias, que sempre me tratou como se fosse seu neto. Nunca fez distinção entre mim e os seus dois netos verdadeiros: o Faustino, filho de uma das filhas, e o Duarte, filho do António, o seu filho mais velho.
Éramos os três mais ou menos da mesma idade. Com eles cresci, como irmãos, e brinquei na areia da praia de Angeiras. 
Por ali ficava enquanto a minha mãe calcorreava os caminhos das aldeias em volta, de giga à cabeça, a apregoar a sardinha, o chicharro, a faneca ou qualquer outro peixe que chegasse nas redes de volta da faina, por conta de António, o filho do velho Zacarias e da velha Zulmira. Eram eles a família que não tínhamos.
Quando não havia pescado para vender, era na apanha do sargaço para estrumar os campos, que a minha mãe ganhava o pão que me dava a comer. E, assim, a fazer uma coisa ali, outra acolá, angariava o pão de que nos alimentávamos. Sempre me cuidou com muito carinho e muito..."

"AOS PONTAPÉS DA VIDA"
"in" Histórias de Gentes Simples" 
Barcelos/Portugal
(Livro solidário, a favor do Projeto de Bolsas de Estudo de Lions Clube de Barcelos)

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