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quinta-feira, novembro 25, 2021

 A PORTA  

Logo pela manhã, bem cedo, começa a ouvir-se o som cadenciado do martelo nas mãos sádicas do carpinteiro sobre a cabeça do prego a espetar a carne da madeira mártir. E a obra toma forma. Cresce. É uma obra de arte, digna de figurar em qualquer famosa exposição. É uma porta em madeira de castanho velho. Bela, perfeita como tudo o que sai das mãos do carpinteiro João. Belo perfeito e eficiente no exercício do seu mister. Nem um milímetro a mais ou a menos. Tudo encaixa no local que lhe pertence como uma luva, preparado para exercer o seu ofício na perfeição. 
Já não há quem trabalhe como ele. Agora é tudo “meia bola e força”, feito em série, e as portas parecem de papel. Cedem ao menor encontrão. 
Mandei-a fazer para substituir a da casa da aldeia, já cansada pelos anos e massacrada pelas intempéries que a vergastaram. Deu muito de si. 
Foi depositária da intimidade de muitas gentes que por ela passaram e se acolheram e viveram as suas vidas para lá do seu corpo protetor. Exerceu o seu mister com brio e eficiência. Porém nada foge ao desgaste do tempo; e a velha porta foi apanhada por ele. 
O seu tempo chegara ao fim. Já não conseguia exercer o seu ofício com dignidade. Teve de ser substituída por uma nova, que está no seu posto, bela, altiva, robusta, a embelezar as velhas paredes graníticas, lavadas e limpas, e a proteger a minha intimidade do frio e dos olhares coscuvilheiros e invasores, como uma fortaleza. 
Desejo-lhe uma vida longa. Pelo menos tão longa e eficiente quanto a da sua antecessora. E que chegue a saborear a companhia dos meus netos e bisnetos, aconchegando-os para lá do seu corpo protetor, entre o conforto das quatro paredes graníticas.

Jeracina Gonçalves
Barcelos/Portugal, 25/11/2021

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