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sábado, março 14, 2015

 “Ninguém diga que está bem!”

Estou aborrecidíssima: uma trinca numa ameixa linda, vermelha, luzidia, a rebentar de madura, fez saltar o chumbo de um dente já “recauchutado” e deixou-me com este aspeto degradante e desconfortável em que me encontro.
Custa a crer que uma ameixa bem madura conseguisse causar tal estrago, mas não há dúvida. Aconteceu. Ainda se fosse um dente molar, escondido lá para trás, mas um canino!... 
Vê-se ao menor descuido. Nem me posso rir. 
E logo comigo que gosto tanto de rir abertamente, espontaneamente e sem qualquer constrangimento. 
Dá-me força, faz-me sentir leve, saudável... Sei lá... Acende-me qualquer luz interior que me traz entusiasmo e alegria. Dá-me ânimo, é bom, faz bem e adoro fazê-lo. Liberta-me. É espantoso como rir me liberta! Sinto que uma boa gargalhada me afasta dos médicos e das farmácias. Tenho verdadeira convicção de que assim é. Mas ,assim desdentada, como poderei fazê-lo? É um espectáculo deplorável. E logo hoje, que tenho um jantar social a que não poderei faltar!
Como farei? Juro que não sei como fazer. O que sei, sem qualquer dúvida, é que detesto ver pessoas desdentadas. Dá-lhes um ar de descuido, de abandono, de desleixo… É degradante, e pronto! E é assim que me sinto agora: degradada e com um aspecto degradante. Preciso de resolver esta situação rapidamente. Mas assim... de repente... não sei.
Não sei mesmo como a resolvê-la. O que me deixa ainda mais deprimida. E há o tal jantar…
Tenho de decidir como vou fazer, dê por onde der.
O primeiro passo será, sem dúvida, telefonar para o meu dentista. É o mais inteligente. Só ele me poderá ajudar -me a sair deste impasse e a solucionar-me este problema. E eu que não gosto nada, mas mesmo nada, de sentar-me na cadeira do dentista. Detesto-a. Dei-lhe até um nome muito especial que, quanto a mim, assenta-lhe que nem uma luva: “A Cadeira da Santa Inquisição”.
Não acham que foi um momento de sublime inspiração?
É horrível estar ali de boca aberta, com a broca a escarafunchar nos meus dentes e aquele barulho a roer… a roer… nos meus ouvidos. É terrível! Insuportável! O barulho da broca mexe-me com os nervos e deixa-me ansiosa. Temo que chegue a um sítio qualquer, que não esteja anestesiado e me cause dor profunda, dilacerante, insuportável; e essa dor atormenta-me o pensamento logo que a broca começa a roer, a roer… E quando tal pensamento me domina, parece que sinto a dor, implacável, a perfurar o meu maxilar.
É medonho!
E também detesto o aspirador na minha boca: deixa-ma seca, áspera…
E a ansiedade da espera, enquanto o dentista prepara a broca e a assistente, entretanto, já mandou abrir a boca e colocou o aspirador?
Não, definitivamente detesto ter de ir ao dentista. Abomino-o profundamente. É terrivelmente desconfortante. Mas, que fazer? A necessidade obriga. E lá vem o “tem de ser”.
E o “tem de ser” tem muita força. Assim como “O que não tem remédio...” E agora não tenho remédio. Preciso de procurar um dentista urgentemente e, de preferência, que me possa atender já; pois, como disse, tenho um jantar a que não posso faltar. 
Quando é preciso, não há broca, não há aspirador, não há ferro que o impeça. É preciso, e pronto. Está tudo dito. E agora tem mesmo de ser. Não o posso evitar, nem protelar por mais tempo. Quanto mais depressa resolver esta situação, melhor. Recuso-me a dar o espetáculo degradante de aparecer perante, seja quem for (além do dentista, claro), assim desdentada.
Vou ligar-lhe imediatamente. Oxalá tenha disponibilidade para me atender.
Mas… e se ele não está, ou se não pode atender-me? Como farei? Como resolverei o problema?
Olha que é bem verdade: “Ninguém diga que está bem!”.
Esta expressão ouço-a frequentemente em situações menos agradáveis, tal como esta em que me encontro, e é perfeita para ilustrá-la.
Como é que há dois míseros minutos poderia imaginar que estaria agora nesta situação deplorável?
Estava tão animada, tão deliciada a antegozar o prazer de saborear aquela ameixa carnuda, corada, luzidia, apetecível, e à primeira dentadinha de nada, fico nesta situação desconfortável, aviltante, sem saber se tenho possibilidade de resolvê-la nas próximas horas!
Bom, tenho de deixar de pensar e agir rapidamente, só assim poderei sair deste impasse. Esta é daquelas situações que só se podem solucionar, agindo. E agindo depressa. Vou ligar ao meu dentista.
Deixa ver, tenho por aqui o número no meu telemóvel:
Doutor… doutor…doutor… Ah! Que arrelia! Não tenho aqui o número dele. E eu que tinha quase a certeza de que o tinha gravado no telemóvel. Mas não. Deve estar ali, na agenda. Vou ver. Aos anos que lá vou já tinha obrigação de saber marcá-lo de cor, mas não sei mesmo. Não tenho memória nenhuma para guardar números. Vou ver na agenda.
Deve estar… Deixa-me ver…, deixa-me ver… Passei-a toda de novo há pouco tempo. Deve estar por aqui.
Doutor… doutor… doutor…
Não, não está. Aqui também não está. Como é que me escapou! Não o copiei da agenda antiga, está visto! Escapou-me. E agora, que faço?
Ah! Pois! Há sempre o recurso à Lista Telefónica. Aí não deve falhar.
Cá está! É este mesmo: Dr. Rui…Já não era sem tempo! Vou ligar-lhe imediatamente. Espero que esteja e possa atender-me já.
…Oh! Não! Ninguém atende! Será que está de férias?
Não! Não deve estar de férias. Não é tempo de férias. Ou será que está?...
Não, não pode estar! Tentarei de novo mais tarde. A empregada saiu para fazer qualquer recado e por isso não atende o telefone. É isso. Voltarei a ligar mais tarde. Entretanto pedirei aos céus para que não esteja de férias.
“Ninguém diga que está bem!”
Jeracina Gonçalves


PS: Dando uma volta pelas pastas do meu computador, encontrei este texto, escrito há  uns anos, que acabei por achar engraçado  e resolvi publicá-lo.

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