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quarta-feira, junho 01, 2022

 

NO PRINCÍPIO ERA UM ASSOBIO

Às quintas-feiras a cidade transformava-se numa grande feira. Parecia que toda a população de Portugal e de Espanha tinha decidido convergir para Barcelos para celebrar qualquer coisa que eu não entendia bem, mas achava que deveria ser algo de bom, pois as pessoas pareciam estar felizes e eu tinha sempre direito a um assobio. As temporadas que passava, em pequena, em casa dos meus avós maternos, passavam-se sempre sob o signo desta festa.


Na cerimónia de doação da coleção de Figurado de Barcelos dos Arquitetos Alexandre Alves Costa e Sergio Fernandez ao Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, compreendi por que razão sempre associei aquela cidade ao som dos assobios de barro: é que, nas suas origens, o figurado destinava-se a ser utilizado como brinquedo para as crianças. Tratava-se de peças pequenas, uma atividade secundária dos oleiros, que se dedicavam sobretudo ao fabrico de louça, e que ocupavam os espaços deixados livres no forno com pequenos instrumentos musicais: ocarinas, gaitas, rouxinóis, cucos... lembro-me, em particular, de um cão que respondia com um assobio possante quando eu nele descarregava o ar dos pulmões.


O que aprendi com Isabel Fernandes, ex-Diretora do Museu de Olaria de Barcelos e atual Diretora do Museu de Alberto Sampaio, Paço dos Duques de Bragança e Castelo de Guimarães, que fez o elogio à coleção na cerimónia da doação, é que, no início, o figurado tinha sempre um assobio acoplado, justificando assim a sua utilidade enquanto brinquedo de criança. Os bonecreiros eram anónimos, e as peças não eram valorizadas como peças de autor. Foi em finais da década de 50, e ao longo dos anos 60, que se deu a grande mudança: o olhar dos adultos começou a valorizar as peças, estas foram crescendo e ocupando cada vez mais espaço nos fornos, e os assobios foram, aos poucos, sendo esquecidos. Ao mesmo tempo, afirmaram-se os nomes de artistas populares, de que Rosa Ramalho é, sem dúvida, o nome maior.


A coleção de Figurado de Barcelos doada ao Museu por Alexandre Alves Costa e Sergio Fernandez, composta por mais de 600 peças, oferece-nos a história desta transição. Compreendemos, quando a escrutinamos, que, à medida que as peças foram perdendo o assobio, elas se agigantaram não apenas no tamanho, mas também nos sobressaltos da imaginação dos ceramistas. A coleção convoca-nos, igualmente, para uma reflexão sobre a forma como o figurado de Barcelos se constituiu, simultaneamente, como um meio utilizado pelo Estado Novo para reforçar o sentido da identidade portuguesa e um lugar de subversão para os artistas.


São estas – e muitas outras histórias – que nos propomos contar na grande exposição que estamos a organizar, em março do próximo ano, da coleção de Figurado de Barcelos que o nosso museu agora recebeu. Estamos muito gratos aos Arquitetos Alexandre Alves Costa e Sergio Fernandez por esta doação que passará a poder ser fruída por uma comunidade alargada – e, como sugeriu Isabel Fernandes, disponibilizada para novas leituras, novos significados, novas emoções. Estamos mesmo entusiasmados com esta doação!


Fátima Vieira, 

Vice-Reitora para a Cultura, Museus e Editora

Publicado por Jeracina Gonçalves

Newsletter nº 98 da Universidade do Porto 

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