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terça-feira, agosto 09, 2022

 INVISÍVEIS AO OLHAR


Olho este tema de frente, de trás, de lado, reviro-o, volto a revirá-lo e não encontro porta ou janela por onde possa entrar no seu âmago, esmiuçar a sua essência. Pressinto-o extenso e profundamente rico e belo, mas passa por mim como uma sombra que não consigo agarrar. Circula pelo meu quintal numa correria louca e não consigo fazê-lo entrar em minha casa, abraçá-lo, senti-lo no meu coração.
São tantas as energias que circulam por aí, a meu lado e em volta de mim, boas e más, naturais e sobrenaturais, que são invisíveis ao meu olhar, talvez pela simples razão de não as querer ver, sentada que sou no meu cadeirão de puro egoísmo. Não quero vê-las para minha comodidade. Circulam por aí, mas são invisíveis ao meu olhar preocupado em olhar apenas para o meu umbigo. Passam por mim como sombras indefinidas, transparentes e morrem à frente, num beco do caminho, dizimadas pela indiferença, pela fome, pela sede, pela metralha e intempéries da vida. E, eu, que podia ter feito alguma coisa para prevenir a sua morte prematura, sentada no meu cadeirão sobranceiro à vida, com comida na mesa todos os dias, na comodidade de uma boa casa, com saúde, família e amigos, não as vi passar, porque não me permiti abrir os olhos do meu coração para o outro, que caminha ao meu lado, mas não deixo que me toque. Seres que circulam com as suas vidas partidas nas esquinas traiçoeiras das intempéries da vida. E é o sem-abrigo que dorme naquele beco, abrigado da noite por meia dúzia de jornais haja chuva ou sol, calor ou frio; é o velhinho que amava a vida e era feliz na sua existência, mas caiu fulminado pela praga do Covid, porque eu, que sabia do perigo que este tempo representava para ele, não quis usar a máscara que poderia tê-lo protegido; são regiões e regiões de todo mundo arrasadas pelas cheias, pelas secas, pelos tufões e furacões, e são milhões os seres humanos que caem exangues, mortos pela fome, pela sede, soterrados nos escombros, arrastados pela força poderosa e assassina das enxurradas; mas eu, sabendo que a poluição é a causa da maioria desses eventos da natureza, continuo a poluí-la, a maltratá-la, não abdico de nenhuma das minhas comodidades, uso e abuso do consumismo, “estou-me nas tintas” para a reciclagem, …
As coisas mais importantes da vida, aquelas que realmente fazem sentido e fazem verdadeiramente uma vida feliz, apenas são visíveis ao nosso olhar, se as pensarmos com o coração. Se deixarmos que os olhos do coração se abram, perscrutem o mundo à nossa volta e nos coloquem no lugar do outro. E, colocando-nos no lugar do outro, nos levem a tentar fazer a nossa parte no sentido de todos podermos ser abraçados no mesmo abraço de bondade, de amor e de paz. E, assim, todos seremos mais felizes e os olhos dos nossos corações estarão abertos também para tantas coisas maravilhosas que o mundo põe, também, sob o nosso olhar físico, mas que não vemos, porque temos os olhos do coração trancados.

Jeracina Gonçalves
Barcelos/Portugal, 26/06/2020

PS: Este tema foi desenvolvido sob proposta de Ana Coelho para integrar uma antologia com o mesmo nome, em que, por razões pessoais, decidi não participar

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