Acho este texto divinal. Sinto esta inquietação permanentemente em mim e não descortino de onde me chega. Este texto chegou-me na ...
Newsletter n.º 61 | 23 de Julho 2021 |
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A arte procura dar forma, conceder um tempo e criar um lugar para o que, de outro modo, não poderá ser nomeado ou representado. Mas essa é uma forma que o artista sabe ser sempre instável, pois tem a consciência de que a arte transporta a própria condição da instabilidade humana, do que escapa, do que é fugaz, do que não será nunca dado por acabado. Compreendi estas ideias quando li, felizmente muito jovem ainda, O Livro do Desassossego do semi-heterónimo de Fernando Pessoa, Bernardo Soares, esse projeto em que o poeta trabalhou toda a vida, e que nunca deu por terminado: uma autobiografia sem factos, em que fragmentos de vozes diferentes e estilos diversos se justapõem, iluminando a indecidibilidade da vida. Lembro-me de me ter sobressaltado ao ler “Senti-me inquieto já. / De repente, o silêncio deixara de respirar”. E foi idêntico o sobressalto que senti hoje de manhã ao ler o e-mail que me enviara o nosso Colega da Faculdade de Letras Luís Adriano Carlos. Luís Adriano Carlos é um artista de ofícios múltiplos, inscrevendo-se no mundo da poesia (veja-se o seu magnífico último livro de poemas, Torpor), da pintura (uma das suas dimensões mais discretas) e da música (como letrista, vocalista, instrumentista e compositor). Este último domínio tem vindo a ser explorado pelo seu alter-ego Aristoxen, através do qual compõe peças “in the box”. O e-mail da manhã trazia-me uma prenda: uma remasterização da canção “Inquietação”, de José Mário Branco, a partir de uma versão deteriorada do YouTube, capturada em streaming. No seu e-mail, dizia-me Luís Adriano Carlos que, “se fosse dum americano, [“Inquietação”] era uma obra-prima do jazz ou do jazz fusion”. O resultado da intervenção de Luís Adriano Carlos pode ser escutado aqui. Ao ouvir a música, “senti-me inquieta já”. Desassossegou-me tudo o que está ainda por acontecer, as coisas por perceber, e dei por mim a repetir, com José Mário Branco (e Luís Adriano Carlos), “Cá dentro, inquietação, inquietação / É só inquietação, inquietação / Porquê, não sei / Mas sei / É que não sei ainda. // Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer / Qualquer coisa que eu devia resolver / Porquê, não sei / Mas sei / Que essa coisa é que é linda". E tenho vindo toda a manhã a afundar a angústia do que tenho ainda por fazer no deslumbramento perante as perguntas por formular, enchendo-me de contentamento nesta descoberta de que “essa coisa é que é linda”. Por isso preciso da arte: para aprender a dizer o que não saberia sequer pensar. Fátima Vieira Vice-Reitora para a Cultura, Museus e Editora"
Publicado por: Jeracina Gonçalves Barcelos/Portugal, 24/07/2021
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