Por Jeracina Gonçalves – Barcelos/Portugal
-Não
sei que dizer-te, Jorge. Sinto-me aprisionada numa gaiola. Desmotivada,
apática, sem vontade para nada.
Da
sala para a cozinha, da cozinha para o quarto, do quarto para a janela, da
janela para varanda, da varanda para o terraço… assim passo os meus dias. Dia
após dia, de sol ou de chuva, sempre o mesmo ritmo. Dias e
dias a olhar para as mesmas plantas, as mesmas árvores, as mesmas casas, os
mesmos telhados, o mesmo retalho de céu, embora dinâmico e sempre diferente,
ouvir o canto dos mesmos pássaros, que geralmente me embalam mas agora me
enfastiam, caminhar pelos mesmos espaços, olhar as mesmas paredes, os mesmos
móveis, os mesmos quadros, sem ver ninguém…
Ah!
Jorge! Este confinamento entre as quatro paredes da minha casa acaba comigo em
pouco tempo.
Ainda
se houvesse mais alguém em casa com quem trocar ideias, jogar as cartas, o
dominó, a batalha naval, mudar os móveis de sítio… Sei lá! Fosse o que fosse.
Até mesmo para disparatar uma vez ou outra. Era ação, era movimento, era vida.
Assim é tudo muito estático, muito parado, muito silencioso e por muito tempo.
Só as vozes dos locutores da TSF me fazem companhia. Oiço todos os programas.
São elas que me vão informando da evolução desta pandemia que afeta todo o
mundo e me está a afetar deste jeito. E olha que bem me questiono: “Mulher,
que se passa contigo?! Nunca foi complicado para ti ficares em casa, e sempre
soubeste ocupar o tempo de forma a parecer-te pouco. Que se passa agora? Gostas
de escrever, gostas de ler, gostas de costurar...
Escreve, lê, costura!”
De
nada me vale. Estou oca, vazia de ideias e de tudo.
Sento-me
ao computador e nada aparece, nada me habita: nem uma palavra, nem uma frase,
nem uma ideia me ocorre que me envolva a mente e me desperte a vontade de
desenvolver qualquer texto minimamente apetecível. Pego num livro: não me
encontro, não me concentro, as palavras fogem, a frase foge, o sentido da frase
foge… Tudo escapa à minha atenção. Levanto-me. Vou até à cozinha, abro a porta
do frigorífico (é ele que mais padece com estes meus ataques de solidão; abro-o
uma infinidade de vezes ao longo do dia) e lá vão duas ou três metades de noz,
uma maçã, uma banana… Sei lá! O que houver pronto a pegar. E isto vai pesando,
pesando, pesando. Daqui a nada nem tenho roupa que me sirva. Do frigorífico
vou até à janela da cozinha, olho o plátano majestoso em frente, que tanto me
encantava e agora nada me diz; volto ao escritório, ao computador, ao livro…
vou até à sala de estar, ponho um CD. Não tenho paciência para ouvi-lo.
Cansa-me. Não me diz nada. Não sinto a emoção da música. Desligo-o e volto ao
escritório e tudo se repete. Enfim:
ando nisto dentro da minha casa, de um lado para o outro, sem acertar ideias
nem encontrar a capacidade de me envolver em qualquer atividade. Nenhuma me
cativa. Nem
me reconheço, Jorge. Eu não era assim.
E,
para cúmulo de tudo isto, neste isolamento que me é imposto por essa miserável
partícula de uma substância qualquer, que nem vida tem, não tenho sequer uma
televisão, onde possa encontrar uma fresta por onde possa fugir,
momentaneamente, para outros ambientes mais apetecíveis, levada pelas imagens e
pelas palavras que me entrem por essa janela do mundo. Avariou há dias. E agora
não encontro sequer um técnico a quem possa recorrer para me resolver o
problema.
-
De facto, assim não deve ser muito fácil, não, Susana! Assim é complicado. A
televisão é uma companhia. Traz-nos o mundo a casa. Embora, às vezes, mais
valha desconhecermos o que vai pelo mundo. Está de tal jeito que ouvir as
notícias e as desgraças que nos trazem só nos faz mal. Mas sempre há um ou
outro programa de entretenimento que ajudam a passar o tempo. E, neste tempo,
são importantes: permitem soltar umas boas gargalhadas de vez em quando e
alargar o pensamento para lá do Covid-19, o que é manifestamente importante
para a saúde, quer física quer mental. Uma boa gargalhada faz sempre bem; e
agora ainda mais.
-
É verdade. Se faz! E como eu sinto agora falta de uma boa gargalhada!
Nunca
fui grande consumidora de televisão, no que respeita a sentar-me no sofá de
olhos fitos no ecrã. Mas ligava-a de manhã e mantinha-a ligada pelo dia. Ia
fazendo o que tinha a fazer e ia ouvindo. Se alguma coisa me despertasse mais
interesse, parava o que estava a fazer e dava-lhe a devida atenção. Dessa forma
esbatia o silêncio em meu redor, e tinha a ilusão de não estar só. Sentia gente
à minha volta, ainda que do lado de lá do pequeno ecrã, e fazia-me companhia.
Hoje
apercebo-me da falta que me fazem essas vozes, esse barulho, essas imagens
(ainda que nem sempre agradáveis), mas que me faziam sentir parte do mundo. Aconteciam
no mundo que habito. E embora
tenha passado essa missão para a TSF, que está sempre ligada cá em casa, é diferente. A imagem dá jeito. É um complemento importante da palavra. E lá diz
o adágio: “Vale mais uma imagem que mil palavras”.
Hoje sinto-me isolada,
separada do mundo de que me habituei a fazer parte, do qual faço parte, mas do
qual me chega pouco eco além do que é emanado pelo Covid19.
A imagem não entra
em minha casa. Apenas a palavra dos locutores e locutoras da TSF me vão fazendo
alguma companhia. E
eu, que até gosto (ou gostava) de estar em casa, sinto-a agora como uma prisão.
E o que nunca foi para mim um fardo é agora vivido como um peso avassalador
sobre a minha cabeça. E passa-se isto comigo, que sempre fiquei dias e dias seguidos entre as quatro paredes da minha casa, ocupada a fazer as minhas
coisas, as coisas de que gosto, sem me aborrecer! Escrevia, costurava,
arrumava, lia, passava uma vista de olhos pelo Facebook, pelo e-mail (tinha
correspondentes que me enviavam imensos anexos divertidos e culturais: músicas,
lugares, factos históricos, monumentos, enfim, coisas divertidas e úteis que me
preenchiam o tempo de forma agradável, divertida e culta. Aprendi muito com
essas coisas que recebia por e-mail de pessoas amigas, cultas, que me mereciam
toda a confiança, amizade e respeito pelo seu saber. E sentia mesmo um enorme
prazer em estar em casa sozinha, entretida com tudo isso. Não foram poucas as
vezes que reclamei por falta de tempo, que parecia ganhar asas e desaparecia num
ai. Não me chegava para nada, dizia eu. Não me chegava para o que queria fazer.
Agora
tenho tempo a mais. E nem Facebook
nem e-mail tenho, que seriam uma
arma, ainda que pequena (ou grande, uma vez que me permitiria contactar com os
meus amigos) para combater este isolamento.
Desde
Julho de 2019 que não tenho Facebook
nem e-mail.
Devo ter açúcar ou melaço
para atrair essas vespas invasoras, esses seres despersonalizados, que se
escondem atrás de máscaras de letras e números para invadirem contas e
vasculharem computadores em busca de algo que lhes possa dar rendimento, como o
mel atrai as formigas. E cada e-mail novo ou conta do Facebook que tenho
tentado criar ao longo deste quase ano, é imediatamente apanhada também. Assim
como tudo o que escrevo. Alguém está a usá-lo em proveito próprio. Certamente. Tenho
gasto rios de dinheiro em limpezas e reinstalações de computadores, e de nada
vale. Pouco depois estão cá de novo. E, como deves calcular, tudo isto me cansa e me provoca esta desmotivação e esta dificuldade
de assumir, com decisão, a necessidade de ficar em casa, e nada do que antes me
agradava e que ainda posso usufruir, me absorve ou capta o meu interesse.
Mas,
claro, anteriormente tinha a liberdade de poder sair quando me apetecesse, e isso torna tudo diferente. Gosto de estar em casa, mas que nada me impeça
de sair sempre que tenha vontade, sem preocupações do que possa acontecer.
E julgo
que toda a gente entenderá isso.
Calculo que aconteça com todos.
Porém
quando essa liberdade é coartada por um malfadado vírus, uma partícula insignificante
de qualquer coisa sem vida, que o impõe e me impede de reger a minha vida como
gosto e me apetece, tendo de me submeter aos seus caprichos, cria em mim uma
resistência (julgo que inconsciente), enorme de obedecer a esse designo. Embora
obedeça ao que está determinado, e fique em casa, pela minha saúde e pela dos
outros; mas com grande desgaste mental e psíquico.
(Continua)
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