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quarta-feira, setembro 09, 2020

REFLEXOS DESTE TEMPO - Março/Abril 2020 – PARTE I


Por Jeracina Gonçalves – Barcelos/Portugal

-Não sei que dizer-te, Jorge. Sinto-me aprisionada numa gaiola. Desmotivada, apática, sem vontade para nada.
Da sala para a cozinha, da cozinha para o quarto, do quarto para a janela, da janela para varanda, da varanda para o terraço… assim passo os meus dias. Dia após dia, de sol ou de chuva, sempre o mesmo ritmo. Dias e dias a olhar para as mesmas plantas, as mesmas árvores, as mesmas casas, os mesmos telhados, o mesmo retalho de céu, embora dinâmico e sempre diferente, ouvir o canto dos mesmos pássaros, que geralmente me embalam mas agora me enfastiam, caminhar pelos mesmos espaços, olhar as mesmas paredes, os mesmos móveis, os mesmos quadros, sem ver ninguém…
Ah! Jorge! Este confinamento entre as quatro paredes da minha casa acaba comigo em pouco tempo.
Ainda se houvesse mais alguém em casa com quem trocar ideias, jogar as cartas, o dominó, a batalha naval, mudar os móveis de sítio… Sei lá! Fosse o que fosse. Até mesmo para disparatar uma vez ou outra. Era ação, era movimento, era vida. Assim é tudo muito estático, muito parado, muito silencioso e por muito tempo. Só as vozes dos locutores da TSF me fazem companhia. Oiço todos os programas. São elas que me vão informando da evolução desta pandemia que afeta todo o mundo e me está a afetar deste jeito. E olha que bem me questiono: “Mulher, que se passa contigo?! Nunca foi complicado para ti ficares em casa, e sempre soubeste ocupar o tempo de forma a parecer-te pouco. Que se passa agora? Gostas de escrever, gostas de ler, gostas de costurar... 
Escreve, lê, costura!”
De nada me vale. Estou oca, vazia de ideias e de tudo.
Sento-me ao computador e nada aparece, nada me habita: nem uma palavra, nem uma frase, nem uma ideia me ocorre que me envolva a mente e me desperte a vontade de desenvolver qualquer texto minimamente apetecível. Pego num livro: não me encontro, não me concentro, as palavras fogem, a frase foge, o sentido da frase foge… Tudo escapa à minha atenção. Levanto-me. Vou até à cozinha, abro a porta do frigorífico (é ele que mais padece com estes meus ataques de solidão; abro-o uma infinidade de vezes ao longo do dia) e lá vão duas ou três metades de noz, uma maçã, uma banana… Sei lá! O que houver pronto a pegar. E isto vai pesando, pesando, pesando. Daqui a nada nem tenho roupa que me sirva. Do frigorífico vou até à janela da cozinha, olho o plátano majestoso em frente, que tanto me encantava e agora nada me diz; volto ao escritório, ao computador, ao livro… vou até à sala de estar, ponho um CD. Não tenho paciência para ouvi-lo. Cansa-me. Não me diz nada. Não sinto a emoção da música. Desligo-o e volto ao escritório e tudo se repete. Enfim: ando nisto dentro da minha casa, de um lado para o outro, sem acertar ideias nem encontrar a capacidade de me envolver em qualquer atividade. Nenhuma me cativa. Nem me reconheço, Jorge. Eu não era assim.
E, para cúmulo de tudo isto, neste isolamento que me é imposto por essa miserável partícula de uma substância qualquer, que nem vida tem, não tenho sequer uma televisão, onde possa encontrar uma fresta por onde possa fugir, momentaneamente, para outros ambientes mais apetecíveis, levada pelas imagens e pelas palavras que me entrem por essa janela do mundo. Avariou há dias. E agora não encontro sequer um técnico a quem possa recorrer para me resolver o problema.
- De facto, assim não deve ser muito fácil, não, Susana! Assim é complicado. A televisão é uma companhia. Traz-nos o mundo a casa. Embora, às vezes, mais valha desconhecermos o que vai pelo mundo. Está de tal jeito que ouvir as notícias e as desgraças que nos trazem só nos faz mal. Mas sempre há um ou outro programa de entretenimento que ajudam a passar o tempo. E, neste tempo, são importantes: permitem soltar umas boas gargalhadas de vez em quando e alargar o pensamento para lá do Covid-19, o que é manifestamente importante para a saúde, quer física quer mental. Uma boa gargalhada faz sempre bem; e agora ainda mais.
- É verdade. Se faz! E como eu sinto agora falta de uma boa gargalhada!
Nunca fui grande consumidora de televisão, no que respeita a sentar-me no sofá de olhos fitos no ecrã. Mas ligava-a de manhã e mantinha-a ligada pelo dia. Ia fazendo o que tinha a fazer e ia ouvindo. Se alguma coisa me despertasse mais interesse, parava o que estava a fazer e dava-lhe a devida atenção. Dessa forma esbatia o silêncio em meu redor, e tinha a ilusão de não estar só. Sentia gente à minha volta, ainda que do lado de lá do pequeno ecrã, e fazia-me companhia. 
Hoje apercebo-me da falta que me fazem essas vozes, esse barulho, essas imagens (ainda que nem sempre agradáveis), mas que me faziam sentir parte do mundo. Aconteciam no mundo que habito. E embora tenha passado essa missão para a TSF, que está sempre ligada cá em casa, é diferente. A imagem dá jeito. É um complemento importante da palavra. E lá diz o adágio: “Vale mais uma imagem que mil palavras”. 
Hoje sinto-me isolada, separada do mundo de que me habituei a fazer parte, do qual faço parte, mas do qual me chega pouco eco além do que é emanado pelo Covid19. 
A imagem não entra em minha casa. Apenas a palavra dos locutores e locutoras da TSF me vão fazendo alguma companhia. E eu, que até gosto (ou gostava) de estar em casa, sinto-a agora como uma prisão. E o que nunca foi para mim um fardo é agora vivido como um peso avassalador sobre a minha cabeça. E passa-se isto comigo, que sempre fiquei dias e dias seguidos entre as quatro paredes da minha casa, ocupada a fazer as minhas coisas, as coisas de que gosto, sem me aborrecer! Escrevia, costurava, arrumava, lia, passava uma vista de olhos pelo Facebook, pelo e-mail (tinha correspondentes que me enviavam imensos anexos divertidos e culturais: músicas, lugares, factos históricos, monumentos, enfim, coisas divertidas e úteis que me preenchiam o tempo de forma agradável, divertida e culta. Aprendi muito com essas coisas que recebia por e-mail de pessoas amigas, cultas, que me mereciam toda a confiança, amizade e respeito pelo seu saber. E sentia mesmo um enorme prazer em estar em casa sozinha, entretida com tudo isso. Não foram poucas as vezes que reclamei por falta de tempo, que parecia ganhar asas e desaparecia num ai. Não me chegava para nada, dizia eu. Não me chegava para o que queria fazer.
Agora tenho tempo a mais. E nem Facebook nem e-mail tenho, que seriam uma arma, ainda que pequena (ou grande, uma vez que me permitiria contactar com os meus amigos) para combater este isolamento.
Desde Julho de 2019 que não tenho Facebook nem e-mail
Devo ter açúcar ou melaço para atrair essas vespas invasoras, esses seres despersonalizados, que se escondem atrás de máscaras de letras e números para invadirem contas e vasculharem computadores em busca de algo que lhes possa dar rendimento, como o mel atrai as formigas. E cada e-mail novo ou conta do Facebook que tenho tentado criar ao longo deste quase ano, é imediatamente apanhada também. Assim como tudo o que escrevo. Alguém está a usá-lo em proveito próprio. Certamente. Tenho gasto rios de dinheiro em limpezas e reinstalações de computadores, e de nada vale. Pouco depois estão cá de novo. E, como deves calcular, tudo isto me cansa e me provoca esta desmotivação e esta dificuldade de assumir, com decisão, a necessidade de ficar em casa, e nada do que antes me agradava e que ainda posso usufruir, me absorve ou capta o meu interesse.
Mas, claro, anteriormente tinha a liberdade de poder sair quando me apetecesse, e isso  torna tudo diferente. Gosto de estar em casa, mas que nada me impeça de sair sempre que tenha vontade, sem preocupações do que possa acontecer. 
E julgo que toda a gente entenderá isso. 
Calculo que aconteça com todos.
Porém quando essa liberdade é coartada por um malfadado vírus, uma partícula insignificante de qualquer coisa sem vida, que o impõe e me impede de reger a minha vida como gosto e me apetece, tendo de me submeter aos seus caprichos, cria em mim uma resistência (julgo que inconsciente), enorme de obedecer a esse designo. Embora obedeça ao que está determinado, e fique em casa, pela minha saúde e pela dos outros; mas com grande desgaste mental e psíquico.
(Continua)

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