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segunda-feira, setembro 21, 2020

 

REFLEXOS DESTE TEMPO - Março/Abril 2020 –  PARTE IV

 

Por Jeracina Gonçalves – Barcelos/Portugal 

 

Gostei do poema que me enviaste, Susana. É realista. Descreve a situação com objectividade e clareza. Quanto a mim, está perfeito. Não me fales em cansaço… em prisão… em nada dessas coisas. Usa as armas que tens e delicia-nos com a tua escrita. Sê generosa e dá ao mundo o que tens no teu coração, na tua alma. 
- Obrigada Jorge. Estou grata a Deus pelo que me dá todos os dias, incluindo cada dia de vida. Todos os dias lho agradeço. Ficarei em casa o tempo que for necessário e ultrapassarei este sentimento menos bom que teima em querer aprisionar-me. Não o permitirei. 
E tiver necessidade de sair, sairei com todos os cuidados aconselhados, cumprido todas as regras. Por mim e pelos outros. Não quero ser causadora da doença nem da morte de ninguém; nem tão pouco da minha. Gosto muito da vida. Gosto muito de viver e sou grata por essa grande dádiva que me foi concedida, que procurarei conservar por muito tempo ainda, nas melhores condições possíveis. 
Claro que terei de aceitar a morte quando ela chegar. Não terei como travá-la se vier para levar-me. É impiedosa e traiçoeira. Aparece quando menos se espera e de onde menos é esperada e derruba a vida mesmo que brilhe nuns olhos acesos de esperança. Faz o que veio fazer e nada a detém. Todavia acredito que apenas leva este invólucro exterior, o corpo físico. O cerne da vida, o âmago, a essência continua para lá deste espaço terreno. Não sei onde nem sob que forma, mas acredito que não acabe aqui. Contudo espero que ela venha ter comigo o mais tarde possível. Não tenho pressa de partir. Gosto de ver o nascer sol todos os dias, de ouvir o chilreio dos pássaros todas as manhãs (são o meu despertador quando a insónia não me persegue) … 
Gosto de estar por aqui! E ainda que seja nas asas de uma das rolazinhas que todas as manhãs me cumprimentam do extremo de lá do estendal da roupa, em frente à janela da minha cozinha, acharei maneira de afastar de mim este sentimento menos positivo. Partirei nas suas asas pelo espaço azul, buscando o sonho que sempre me mantém deliciosamente confortável com a vida, apesar das vicissitudes menos boas com que às vezes me presenteia. 
Embora isto pareça uma contradição é uma verdade real e muito presente na minha vida. “O sonho comanda a vida”, disse o poeta; pois a mim ajuda-me a vivê-la. O sonho, a fuga para outros espaços, não sei onde, que sinto e vejo dentro de mim (talvez porque os sinta urgentes e necessários na transformação deste mundo, fazendo-o mais igualitário e mais justo), têm-me mantido psiquicamente saudável ao longo destes anos que vivo só, sem que a solidão se me tenha feito notar. Não me tomou por um dia sequer, a não ser agora…um pouco. Ao sonho, à quimera consentida, à fuga para outros mundos através da escrita, o devo. Escrever é uma das tais práticas que dão asas ao meu tempo. Voa… voa… voa… Voa como a ave mais rápida a rasgar o espaço com as suas asas abertas. Foge-me. E, geralmente, clamo por mais. 
Todavia, nem sempre a inspiração aparece quando é chamada. Mas alguma coisa há-de surgir perante uma página em branco do Word: poema, crónica, conto… Não sei. Mas qualquer coisa há-de brotar que me faça sair de entre estas quatro paredes e voar pelo espaço da imaginação. 
- Assim gosto mais, miúda! Consegui-lo-ás. Os teus recursos são variados. Aproveita-os. Espraia a imaginação pelos amplos espaços da fantasia. Dá-lhe a liberdade, que hoje te é negada ao corpo físico, e deliciar-me-ás com mais um dos teus belos textos. Sabes quanto gosto de lê-los. 

Esta conversa com o Jorge fez-me bem. Despertou-me. Ele tem razão. Tenho tudo para afastar de mim este sentimento negativo. Assumirei, com determinação, a necessidade deste confinamento, como uma vontade própria, uma determinação assumida pela minha consciência: “estou confinada, porque eu mo determinei, conscientemente, perante a minha responsabilidade para com a minha saúde e a do colectivo”. 
Penso que assim tornar-se-á mais fácil viver este confinamento sem barreiras psicológicas. Vou colocar um CD a passar uma música relaxante e ligar o computador. Quem sabe se não conseguirei agora a tal fuga providencial de que necessito, e possa envolver-me na criação de um qualquer texto, poema ou crónica, com o qual possa brindar o Jorge, de maneira a deixá-lo feliz. É um bom amigo. Cheio de problemas, mas sempre disponível e atento aos problemas dos outros. 

“Uma aguarela em tonalidades verdes, onde brincam e chilreiam passarinhos, abre-me as janelas da alma todas as manhãs, inundando a minha alma e o meu coração de beleza serena e de tranquila paz. 
Todavia esta paz, que usufruo neste meu mundo mais ou menos protegido, é maculada por outro mundo, para lá deste, que me chega também e me atinge o coração com um terrível bombardear de gritos saídos das entranhas da dor, que se manifesta e estrondeia pelos caminhos da Terra das mais diversas formas. Estende-se por todas as latitudes e longitudes, movimenta-se em todos os meios e percorre toda a Terra. São gritos de solidão, de sofrimento e de morte, distribuídos pela Terra de forma insidiosa e perversa, pelas mãos felinas de um vírus assassino, que arrasta consigo multidões e entrega às garras da morte muitas dessas pessoas, mais frágeis e desgastadas; gritos de solidão, de sofrimento e de morte de esqueletos a circularem por entre searas de fome e campos de ódio e de solidão; gritos silenciosos de solidão, de sofrimento e de morte, de crianças esqueléticas, exangues nos braços de mães de olhos mortos pela dor, pela fome e pela incompreensão de tanta dor que as atinge e aos seus filhos; gritos de solidão, de sofrimento e de morte, provenientes das guerras espalhadas pelos quatro cantos da Terra, que destroem os lares de pessoas de paz, transformando-as em seres errantes, pelo mundo à procura de um canto onde possam reconstruir o seu espaço de paz e de amor. 
Gritos. Gritos. Gritos. 
Gritos que atingem o meu coração, vindos das mais diversas partes do mundo. 
E a minha alma grita. Grita a revolta contra os chacais assassinos, que pululam pelos caminhos da Terra e fomentam e alimentam este estado de coisas e contra os abutres que se alimentam e engordam com elas. Uns e outros alimentam-se e engordam à sombra de todo este sofrimento, de toda esta solidão, de toda esta dor. 
Senhor! Tu que és Vida, que és Paz, que és Amor, que derramaste o Teu sangue por amor a este povo, dispersa agora a Tua bênção sobre os caminhos da Terra. 
Dissemina sobre a Terra a Tua Paz, a Tua Alegria e o Teu Amor!” 

- Bom dia, Jorge. Envio-te o primeiro texto da minha redenção. Escrevi-o ontem de manhã, depois de abrir a janela da minha cozinha. Consegui olhar o meu vizinho plátano com os olhos com que sempre o vi, que andavam turvos pelo nevoeiro deste tempo. Ele, com o seu porte altivo e sereno, mo inspirou. Espero que gostes.

21/09/2020 (continua)

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