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domingo, setembro 13, 2020

REFLEXOS DESTE TEMPO - Março/Abril 2020 – PARTE III


Por Jeracina Gonçalves – Barcelos/Portugal 


Procura em ti e verás que encontras a forma de pores cá fora toda a negatividade que te atormenta e poderás, então, dar-nos a luz das palavras de esperança e de amor que conheço da tua escrita, Susana. É dessas que fico à espera. 
- Está a fazer-me falta o chazinho de sábado à tarde com as minhas amigas, o almoço das quartas-feiras, os pequenos passeios e convívios que fazíamos quase todos os meses, as pequenas larachas que se dizem (sem nada se dizer), que nos libertam, nos fazem rir (e como é importante rir… Jorge!), as pequenas tricas que acontecem aqui e ali, as fofocas daqui e de acolá, desta e daquela… Enfim, essas pequenas coisas, tão simples, tão básicas, que parecem de menos importância quando temos a liberdade de fazê-las quando nos apetece, mas tomam um significado enorme e tornam-se tão essenciais se somos privados delas, especialmente por decisão alheia. Fazem imensa falta à nossa saúde psíquica e, consequentemente, à saúde física. São as pequenas coisas que vão dando o sabor à nossa vida. Dão-lhe o nosso timbre. São escolhas nossas e fazem-nos sentir bem. 
- Sim, de acordo. Claro que eu não tenho por que sentir esse sentimento de clausura que te aflige. Continuo a caminhar pelos mesmos caminhos, a dirigir-me aos mesmos terrenos, a realizar os trabalhos próprios desta época (enxertar, botar sulfato, apertar as vides); trabalhos ao ar livre, a céu aberto. Continuo a circular livremente pelos mesmos lugares de sempre. No entanto também sinto uma certa - não direi angústia -, mas uma certa apreensão, talvez. E, na verdade, por aqui, a vida pouco se alterou. Não há missa nem festas nem velórios. Aí residem as principais diferenças em relação ao que era antes do Covid. Mas sinto essa falta de convívio com os amigos no adro da igreja, aos Domingos, antes e depois da missa, em que falávamos das coisas banais do dia-a-dia. Íamos sabendo as novidades da freguesia, o que aconteceu a este ou àquele… Enfim, essas pequenas realidades que fazem a vida de uma comunidade rural. E ainda as saídas à tarde, para aqui e para acolá, com a Joana. Libertavam-nos do cansaço de uma semana de trabalho intenso e duro. Sinto que o Domingo está incompleto. Falta-lhe qualquer coisa. Todavia não é nada que não consiga ultrapassar. Não estou confinado entre as quatro paredes e, dentro do meu espaço habitual do dia-a-dia, circulo por onde quero sem restrições. Por isso compreendo o que sentes muito bem. Mas sabemos que tem de ser assim. E precisas de ultrapassar essa frustração deitando mão das armas que puderes. 
- Eu sei, Jorge. E ultrapassarei isto, tenho a certeza. 
A Joana, como tem passado? Como está a dar-se com isto? 
- Mais ou menos como eu. As restrições são as mesmas que as minhas. O Covid-19 ainda não chegou aqui. E enquanto não vierem os emigrantes não há muito risco. Entra e sai pouca gente da aldeia. Não teremos grandes preocupações com o “bichinho” que não é, antes de eles chegarem (se vierem). Seguimos com a nossa vida, com as restrições de que falei e com o nosso trabalho, que é muito nesta época. Depois teremos de ter mais cuidado: vêm de fora e sabe-se lá com quem contactaram. E o pior deste vírus, quanto a mim, é ter portadores saudáveis, que o transportam consigo e o transmitem sem o saberem. Não têm sintomas. Isto obriga-nos a olhar de lado para todas as pessoas, especialmente para as mais jovens. Pessoas que, às vezes, não vemos há longo tempo e gostaríamos de poder abraçar sem reservas. Priva-nos assim do abraço de um neto, de uma neta, de um filho, de uma filha, que não damos nem recebemos, como gostaríamos, por medo do contágio. E é muito complicado ter de aceitar que o que mais alegria nos dá, não poderá ser feito sem travões, sem pensamentos reservados, sempre com uma sombra a pairar em volta. É muito mau, Susana. 
- É como dizes. É o que acontece comigo: nem as minhas netas nem os meus filhos vêm cá a casa, nem eu quero que venham. O nosso contacto é apenas telefónico. Mas bem me custa. 
Se vivêssemos todos juntos… mas vivendo em sítios diferentes e a termos contactos diferentes, os encontros terão de ser muito cautelosos. Pertenço aos grupos de risco e não tenho nenhuma pressa em passar para o outro lado da vida. Mil vezes o confinamento dentro das quatro paredes da minha casa (pesado por estar só e não poder sair, sem medo, quando me apetece), mas viva e saudável. A minha casa é o meu ninho. É o meu lar. É o lugar que construí para mim e para a minha família. Guarda os meus afetos, as minhas pequenas relíquias; em tempos normais gosto de estar em casa. Agora é que, embora assuma conscientemente a necessidade deste confinamento, estou a senti-lo como o encarceramento da minha vontade, da minha liberdade de ação, ao meu querer. 
- É algo imposto pelas circunstâncias, Susana. E quando é uma obrigação não consentida, mas forçada por alguém ou por alguma coisa é sentida de forma diferente. 
- Exatamente. Ultimamente tenho pensado muito nos presidiários e no tormento que deve ser viver entre os muros robustos e as portas trancadas de uma cadeia, por anos e anos, com grades e guardas armados em volta. 
- Fizeram por isso, Susana. Não estão presos por ajudarem uma velhinha a carregar o saco das compras, ou um velhinho a atravessar a rua, ou por encaminharem uma criança perdida até casa… Mataram, roubaram, violaram, corromperam outros com a força do seu poder, do seu dinheiro, com imposições coercivas e outras. Há muitos mais cá fora, que deviam estar dentro. Não tenhas pena. Não a merecem. Estão presos porque violaram a lei. Agiram contra as leis do seu país e contra os direitos e a integridade física ou moral dos seus semelhantes, ou contra as duas. Merecem o castigo. Devem cumpri-lo. 
- Não tenho nada a opor, Jorge. Merecem o castigo e devem cumpri-lo. De acordo. Mas esta situação tem-me levado a pensar em coisas que nunca antes me tinham passado pela cabeça. A situação dos presidiários é uma delas. Presos anos e anos… Quando saem não deve ser fácil a adaptação à vida cá fora, não te parece? 
- Não deve ser nada fácil, é verdade. E muitos saem e logo a seguir praticam os mesmos crimes que os meteram dentro. E sabe-se lá porquê? Porém, nós, que não praticamos crime algum, temos de ter paciência e encarar esta situação com calma, aprendendo a lidar com este confinamento o tempo que for necessário. É essencial darmos a volta por cima aos sentimentos negativos que nos paralisam a vontade. Afundá-los lá para baixo, bem para o fundo, de modo a não incomodarem. Não será fácil, mas temos de consegui-lo. E tu tens todas as armas para fazê-lo. Deita mão delas e pensa que tudo vai voltar a ser como dantes. Embora não saibamos quando. Mas vai voltar a ser como dantes.
 Ou melhor: espero mesmo que algo mude para melhor nas relações humanas, depois de tudo isto. Todavia, por agora, é essencial que cumpramos as normas. Tens uma casa ampla e confortável, por onde podes deambular à vontade: vestida… despida…, como te apetecer, sem teres ninguém a controlar os teus atos. Aceita e agradece a sorte que tens. Pensa nas famílias grandes, com vários membros, que têm de viver confinados em espaços exíguos. Espaços onde só há lugar para um ou dois e vivem três ou quatro. Essas, sim, têm todos os motivos para desesperarem. E por esse país além, por essas cidades, haverá muita gente a viver nessas condições miseráveis. O preço das rendas e os salários baixos não lhes permitiam arrendar casas amplas. Muitos viverão como a “sardinha na canasta”, dia após dia, noite após noite, crianças pequenas, adolescentes, pais, avós… todos os dias no mesmo espaço, todas as noites no mesmo espaço… os ânimos confrontam-se, exaltam-se, surgem as pequenas guerrilhas, as grandes guerras, a violência… 
- Sei disso, Jorge. Sei que sou uma privilegiada e não devia lamuriar-me. Mas que queres, é assim que me sinto: prisioneira. Prisioneira dessa partícula ínfima, que tem a capacidade de destruir vidas e de espalhar o caos pelo mundo à velocidade do vento. Mas sei que é apenas uma fase mais negativa que estou a passar, que ultrapassarei. Não deixarei que este sentimento de impotência me continue a paralisar a vontade por muito mais tempo. Aproveito para brindar-te com mais um poema: 

TEMPO DE PANDEMIA 

Chegou. Sem cerimónia 
Atinge ricos e pobres 
Novos e velhos 
Sem-abrigo ou palacianos. 
Não distingue raça, não distingue cor 
Nem sexo nem religião 
Ataca a todos sem distinção. 
De oriente para ocidente 
De norte para sul 
Percorre o mundo de lés-a-lés 
Com a rapidez do vento. 
Difunde o medo, difunde a dor 
Difunde o sofrimento… 
Difunde a morte.
Impõe ao mundo o seu poder maléfico. 
Confinado ao seu danoso poder 
O mundo paralisa. Perde suporte. 
E a fome circulante sobre a Terra, cresce. 
Cresce a tristeza, cresce o desemprego 
Cresce sofrimento e cresce a morte. 

13/09/2020 (continua)

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