Numa quietude de paz com cheiro a maresia abre-se aos meus sentidos a imensidade do oceano, sereno, belo, qual salva de prata de límpido brilho argênteo. E o meu olhar, perdido nessa amplitude azul, atravessa a linha tangível do horizonte, beija os cumes dos montes, banha-se na cascata palpitante, caminha pelas encostas, desce pelos desfiladeiros, abraça os vales…
O meu coração, iluminado pelo brilho nostálgico de outros tempos entre a montanha dos sonhos a desabrochar em cascatas de luz, alegria e amor, bate forte, agarra o tempo e beija as flores do prado a desabrochar cheias de vivacidade e energia, iluminadas por cascatas de luz, e brinca com crianças vibrantes de espontânea alegria e crença no dia de amanhã, ao jogo da cabra-cega, do pilha, da macaca, do pião, do arco, disputa na rua renhidos jogos de futebol com bola de trapos, banha-se, entre saudáveis gargalhadas, nas águas frescas e cristalinas do ribeiro que desce pelo desfiladeiro da montanha, ri, barafusta, zanga-se, luta…
São crianças do meu tempo. Crianças que habitaram os meus dias de criança: a Guilhermina, o Manuel João, a Maria Augusta, o Fernandinho, o Óscar, a Elisabete, a Ana Maria, o Manuel e o António (dois irmãos gémeos) e muitas e muitas outras (nesse tempo havia crianças na minha terra), colegas da escola primária (muitos e muitas já partiram). Trabalhavam -como eu trabalhei - para ajudar os pais nas lides do campo e contribuir para o sustento familiar. Eram tempos de vacas magras (tão exíguas para alguns), mas também brincavam, corriam e riam como qualquer criança. E desenvolviam a imaginação e a criatividade na construção dos seus próprios brinquedos. E eu fiz muitas bonecas de trapo, que escondia, numa luta sem tréguas com os meus irmãos (só rapazes), que mas desfaziam, puxando um pela cabeça e outro pelas pernas) e faziam-me muito infeliz, nesse tempo.
Chorava, chorava, e fazia outra. Mal a encontravam, davam-lhe o mesmo tratamento.
Outros tempos… Tempos de liberdade e emoção e, para muitos, de fome também. Mas havia a liberdade de correr pelos campos, de trepar às árvores, de travar conhecimento com os animaizinhos da beira do rio, com o cantar dos pássaros, com a música da água, com a beleza e o aroma das flores silvestres…
Coisas lindas que fazem falta às crianças de hoje, muito hábeis em cliques, mas que não correm, não conhecem o cheiro da terra molhada, o riso das flores, o voo livre dos pássaros, nunca viram um ninho, o germinar de uma semente, uma sementeira jovem, rasteirinha, de milho (por exemplo) a cobrir numa ampla extensão a terra negra.
Coisas lindas de que fazemos parte e fazem parte de nós (porque somos Natureza) e nos fazem amar e sentir a natureza, como sendo parte integrante de nós, conscientes de que, cuidando da sua saúde, cuidamos da nossa e preservamos a nossa vida como espécie, também.
Os tempos evoluem e trazem coisas novas importantes, inovadoras e facilitadoras da vida. Mas levam outras, que não devíamos deixar partir. Ligam-nos à essência. Fazem parte do espírito, da alma, do sentimento, educam a sensibilidade.
Jeracina Gonçalves
Barcelos/Portugal, 17/07/2022
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